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Julia C. Durigan
Criar Ribeirão Preto

A propósito de sapatos
"...fazendo doer os pés dão azo ao prazer de descalçar..."
Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas

Durante milhares de anos o homem pré-histórico procurava sobreviver às incertezas de cada dia, aspirando tão somente ao alvorecer do próximo. Hoje, busca-se a somatória de tudo. Não basta apenas viver, temos que possuir o material e buscar incessantemente o espiritual.

A este conjunto denomina-se qualidade de vida, que não passa de um paradigma imposto pelo meio; uma sobrecarga de vontades que atende às necessidades de uma sociedade gritante que precisa de constantes insatisfeitos a consumiravidamente tudo o que é por ela produzido. Metaforicamente, a atual concepção de qualidade de vida é uma grande caixa de sapatos, recheada pelo mais belo par, comprado com muito esforço e privações para ser vestido durante a mais longa festa.

A festa, porém, não tem data marcada, é a imprevisível vida, que nos esvae, paulativamente, como notas musicais; cotidiano. Para proteger, portanto, os sapatos da ação dos dias, a sua caixa, consciência preocupada, ao mesmo tempo que os preserva, os esconde, nos priva do que mais gostamos e, ao vestimo-los, após anos de guarda-roupa, cativeiro, apertados dos nossos pés estão.

Os sapatos tão bem conservados foram que seu número se fez pequeno. Assim como a qualidade de vida, duramente buscada ao longo dos anos, porém quando alcançada, foi dolorosamente calçada, pois nos faz abrir de grande parte de prazerosos ensejos.

Após incorporarmos os novos sapatos apertados, passamos a festa inteira incomodados, levamos uma vida regrada, limitada, não imposta física mas psicologicamente, pois nos preocupamos em conseguir, através da mudança de hábitos, anos de vida a mais. Face a escassez de momentos bons, nos torna epicuristas: assim que podemos, descalçar a rigidez dos sapatos e nos deleitamos, descalço ou providos de chinelos, lanches, chocolates, batatas fritas, faltas de academia, cervejinha apenas para termos um momento de gozo e conforto.

De que nos adianta aumentar nossas vidas de três a cinco anos, ou de seis a dez, que seja, se passamos sessenta, setenta anos na mais mesquinha existência? É preciso descalçar os sapatos no meio da festa para que se possa aproveitá-la ao máximo. Qualidade de vida ao mesmo tempo que ilude enche os bolsos das mais refinadas sapatarias.