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Isabela da Fonseca Politi
Criar Ribeirão Preto

Máquina famigerada

Em "Famigerado", de Primeiras Estórias, o caráter dual da palavra famigerado torna-se um alívio, única estratégia palpável para o médico livrar-se da temida morte. Nesse conto, Damásio - assassino conhecido da região - procura o médico da cidadezinha a fim de saber se a palavra a qual lhe chamaram era motivo para discórdia ou para paz. Por que o médico fora escolhido? Ora, simples compreender. Era o único privilegiado, instruído. Tinha o domínio da palavra. Damásio era refém. Refém da palavra.

O doutor mostrou-se astuto ao escolher os adjetivos "celebre", "famoso" como sinônimos de famigerado, ao invés de "mau caráter" - verdadeira intenção do locutor desconhecido. As máquinas são como a palavra famigerado. Possuem tanto significância boa quanto ruim. São muitas vezes motivo de discórdia, injustiça, desigualdade, exclusão, invisibilidade... Ao mesmo tempo, proporcionam uma vida regada de facilidades e benefícios. No entanto, os Damásios espalhados por aí são reféns dessa tecnologia e avanço. Tornam-se cegos, "optam" por não ver o óbvio: foram ofendidos e não exaltados. Pobres aqueles que, na escuridão da dúvida, preferem iludir-se.

Por um lado, as máquinas podem nos trazer velocidade, conforto, progresso. Podem também nos poupar de serviços pesados, os quais exijam muito esforço físico ou mental. O que seria de uma cozinheira atual sem seu fogão? Ou mesmo um matemático sem sua máquina de calcular? As máquinas também são capazes de explorar mares ainda inavegáveis pelo homem devido às inúmeras limitações desse. Afinal, o que seria de um cientista sem o seu microscópio avançado? Sejamos humildes! Somos seres incompletos e, em um patamar tão elevado e complexo como o que atingiu a existência, tornamo-nos, sim, dependentes delas para muitas finalidades. Gozemos, pois, a sua existência.

Mas, gozemos com cautela. Quando fazem jus ao seu caráter dual, as máquinas humilham quem até pouco tempo as exaltava - há exemplo melhor que o jantar de Jacinto em "As cidades e as Serras"? É também seu costume substituir, excluir os seres humanos de suas ocupações, tornando-os, assim, Damásios contra a própria vontade. Quantas vezes ouvimos falar sobre o tal desemprego estrutural? Catracas substituem porteiros de outrora. Máquinas agrícolas cada vez mais complexas expulsam os trabalhadores rurais. Em alguns países, robôs fazem os serviços domésticos. E, manchete de "amanhã": robôs são os namorados mais procurados e elogiados pelos parceiros. É o homem buscando maneiras de livrar-se do próprio homem. Estranho. Incômodo.

Não há nada de condenável com o avanço e a inovação obtidos através das máquinas. O desenvolvimento e progresso dessas ferramentas são a certeza de que o mundo carece de alternativas para saciar a massacrante demanda. É como se as máquinas "dançassem" conforme a música. Os compositores? Nós, seres humanos consumistas. Se temos então tanto poder sobre elas, não deixemos que a situação se inverta e elas nos dominem de vez ou assemelhem-se cada vez mais conosco. Transformemo-nas em um instrumento unilateral e acabemos de vez com os Damásios espalhando por aí.