"João Gostoso" de Manuel Bandeira era apenas trabalhador de feira-livre. "Macabéa" de Clarice Lispector, uma pobre datilógrafa que adorava os significantes das palavras. Qual o vínculo entre eles? Nenhum, exceto pelo fato de serem somente integrantes estáticos da paisagem urbana, ao passo que deveriam ser agentes dinâmicos. Meras vítimas da reificação, são os chamados invisíveis sociais.

Sociedade do mérito? Sim, isso está incrustrado no Brasil desde que Vargas inventou o concurso público (DASP). Assim, tornamo-nos os admiradores de função e não de pessoas. Tomados por uma indiferença social, almejamos relacionamentos apenas com aqueles que "chegaram lá", em contra partida evitamos os miseráveis, trabalhadores braçais a mesmo profissionais de atividades não tão consagradas; como se o insucesso fosse transmissível. Dentre as consequências, há a reificação social, fruto de uma ausência de inserção de muitas pessoas em funções fáticas do cotidiano.

Além da meritocracia, também somos a sociedade da uniformização. Segundo muitos pesquisadores, o preconceito gerador da invisibilidade se alastra por "tudo aquilo que está fora do padrão" das classes dominadoras. Por se portarem de forma inversa à "normalidade", pessoas como profissionais do sexo, homossexuais, mendigos, deficientes físicos e mentais são excluídos não só pela sociedade como também pelo estado; consistindo na paisagem mais devastadas do ambiente urbano, sem direitos e posições.

Mas somos também a sociedade da alternância, da conveniência. A gentileza depende exclusivamente do fator de troca. Tendo um interesse, seja econômico, de relacionamento, de ascensão "Quem indica", somos incrivelmente gentis. O engraçado é que é sempre com quem tem algo a oferecer. "Para que cumprimentar o lixeiro, se nunca mais o verei mesmo?" Gentileza por gentileza, preferimos ser impassíveis, grosseiros.

João gostoso morre afogado na Rodrigo de Freitas, o que foi noticiado apenas porque a lagoa tem sobrenome (João era um mero feirante). Macabéa somente se sentiu alguém quando foi atropelado por uma Mercedes, tendo a hora de sua estrela. Muitas pessoas se sentem assim invisíveis, excluídas, marginalizadas. Elas são unicamente integrantes de uma paisagem, formando uma margem, "a terceira margem do rio".