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Felipe Tagamori
Criar São Carlos

Armadura da liberdade

Não há quem não conheça "Abaporu" - obra-presente feita por Tarsila do Amaral a Oswald de Andrade - e que não estranhe, a primeira vista, sua simplicidade e (genial) desproporção geométrica. Um cacto, um sol e um sertanejo. Esta, com braços e pernas - exageradamente grandes - contrastando com uma íntima cabeça sem rosto definido, não possui boca, nariz, orelhas ou expressão; possui olhos quase fechados, perdidos, falsamente livres. Presos à seca, à miséria. Cabeça apoiada em um dos braços; pensando.

Abaporus contemporâneos são criados constantemente, seja pela cabeça pequena ou pelo olhar perdido. O atual cenário, não preenchido por cacto, seca ou sol, mas por engrenagens, produtos e propagandas, justifica a desproporção em uma massa trabalhadora não formada ou educada para pensar. Numa sociedade disciplinar, quase parental, um filtro: cartas na mesa, baralho marcado, escolhas já feitas. Fato social. A necessidade de bonecos livres, que, livremente, comprem, vistam, comam e até matem sem questionar, explica a uniformização de vontades e sonhos.

Andar na contra-mão é possível : dizer "não" a uma regra sutilmente imposta, cortar os fios que nos unem ao ventríloco, ser rebelde, pôr em xeque os valores vigentes, trocar o baralho. Galileu Galilei, século XVI, pagou o preço: ameaçado de tortura pela inquisição, foi obrigado a negar publicamente o heliocentrismo. Giordano Bruno, teólogo, filósofo, herege; fogueira. Quebrar regras é possível, mas a coerção é inevitável.

A fogueira da inquisição ainda queima; simbólica, intrínseca ao olhar e ao julgamento dirigidos ao corajoso, ao diferente, ao excluído. Este, se não voluntário, mas por falta de opção, procura fugir do fogo: rouba, mata,compra, sonha. Vende sua mente e veste uma armadura em seu corpo gigante, desproporcional de Abaporu. A rigor, viver às margens da sociedade não parece ser algo a qual estejamos preparados. Fechamos bocas; calamo-nos. Ouvidos indiferentes. Olhos abertos, atentos à nova ordem.