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Núria Cristina Eler
Criar São Carlos

Olhos de Cigana

Capitu, moça de olhos oblíquos e dissimulados, foi um paradoxo na vida de Bentinho. Mesmo a amando não superou suas desconfianças, que também nunca puderam ser comprovadas, visto serem frutos de uma visão subjetiva do próprio Bentinho. De uma forma não literária, podemos dizer que a Capitu de nosso tempo é a polêmica definição da qualidade de vida. Nós somos parte dos milhões de Bentinhos espalhados pelo globo, vivendo o paradoxo imposto por nós mesmos da idoneidade de nossa Capitu.

Queremos uma vida com mais qualidade, buscamos nos alimentar melhor, praticamos exercícios, amamos mais. Acabamos, por fim, nos obrigando a ser o que não somos, vítimas de uma exigência de perfeição sutilmente incorporada em nossa sociedade pela mídia, nossos ídolos e nós próprios. Em busca desta qualidade, as pessoas foram promovendo a urbanização do país, asseguraram para si escolas, médicos, empregos. Como todas essas vantagens, o êxodo rural se acentuou e, sem o devido planejamentos, as cidades não puderam absorver esse contingente. A criminalidade aumentou. Com medo, as pessoas passaram a se refugiar em suas casas, aumentando assim também o estresse, as doenças psicológicas, a solidão.

A qualidade dos alimentos e os padrões estéticos também mudaram e o que parecia colaborar para uma vida mais saudável tornou-se também uma contradição. Antes do advento da geladeira, os alimentos eram conservados em banha, e nada se ouvia a respeito da obesidade. Hoje, com a maior oferta de alimentos, principalmente os industrializados, as pessoas se tornaram obesas. Não bastasse o excesso de gordura fazer mal para a saúde, agora é também um estigmatizador, que aliado a um batalhão de "despeitados", narigudos "e outros" defeitos, também é responsável pelo aumento no consumo de Prozac. O padrão de beleza imposto, especialmente às mulheres, pela mídia, faz com que questionemos aquilo que somos, porém, sem que atinjamos o padrão veiculado nos tornamos infelizes.

Por fim, dizem que o amor traz qualidade de vida e não há como negar isso. O problema não é o amor e sim a forma como lidamos com os nossos relacionamentos. A pesquisadora Laura Kipnis crê que hoje as pessoas são mais infelizes no amor porque têm de fazer um maior esforço para assegurar seus relacionamentos. No entanto, com as possibilidades do divórcio, a verdade é que nos esforçamos cada vez menos para que um casamento ou namoro seja feliz, o nosso egoísmo é que mina nossas expectativas. Prova disso é que, feitas algumas ressalvas, a maior parte dos casamentos até meados do século XX satisfazia as pessoas, isso porque, sem a possibilidade da separação, as pessoas se esforçavam de verdade para serem felizes e amarem os seus parceiros, obtendo com o tempo a realização.

Bentinho nunca soube se Capitu o traiu. Nós ainda estamos na busca pela verdade, sem sabermos se é melhor ser obeso, mas comer o que nos dá prazer, ou se é vivermos no neurótico controle da balança que, embora nos livre das chacotas, exclui socialmente. O impressionismo de "O Lanche dos Canoeiros" de Renoir e o expressionismo de "O grito" de Edvard Munch ilustram bem o nosso conflito. Ao mesmo tempo que queremos a tranqüilidade extasiante de Renoir, nos vemos presos na tela angustiante de Munch. Apesar de opostos, um está ligado ao outro assim como alcançar e perder a tão almejada qualidade para viver. Assim como Bentinho e sua preciosa Capitu dos olhos de cigana, oblíquos e dissimulados.