Cavalos coloridos, músicas clássica, jogo de luzes. Depois de anos dormidos em um velho trapiche abandonado, os capitães da areia necessitam das cores que lhes foram retiradas da infância. A chegada do carrossel sinaliza um verdadeiro arco-íris ao menos em um de seus dias. Porém, o brinquedo - até então colossal - apresenta - se desbotado, com peças quebradas e um motor enguiçado. A mentira construída no ideário dos menores abandonados forneceu-lhes pequeno alívio diante da penosidade cotidiana. Boas mentiras podem existir?
Em uma propaganda da Caixa Econômica Federal, Machado de Assis foi representado por um homem branco. O Bruxo do Cosme Velho teve sua natureza modificada, alterada em um aspecto crucial de sua história de vida. Os obstáculos enfrentados na trajetória de menino pobre, negro e gago a membro fundador da Academia Brasileira de Letras foram amenizados, suprimindo da população negra de seus maiores ícones. Por manifestarem tal viés enganoso, mentiras são comumente tidas como negativas e prejudiciais, desvios de caráter que viram a manipular situações bem como lograr indivíduos.
No entanto, verifica-se que o engano é capaz de impulsionar sonhos, alimentando a batalha diária. Nesse sentido, projetar mentiras - e sonhar com elas - faz com que indivíduos enfrentem a realidade, ainda que ela seja um suplício de Sísifo. Se Fabiano não sonhasse com comida em abundância e escola para os filhos não teria forças para continuar seu nomadismo. Se professores da rede pública brasileira limitassem-se à verdade, enxergando apenas a degradação das escolas e o desinteresse da maioridade dos alunos, certamente não existiriam profissionais no setor.
Ao atribuir cores aos dias dos menores abandonados, a mentira minora a atrocidade de suas vidas. Mesmo que perigosa por conter o engano, a falácia, a manipulação de situações e até de fatos históricos, é responsável pelo fortalecimento do combate às dificuldades. Afinal, é preciso empurrar a pedra, que depois voltará de novo. É preciso encontrar um açude, que secará devido à estiagem. É preciso crer na "pátria educadora".