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Guilherme Giraldes
Criar São Carlos

Anjo roubado

Amanhece outro dia de inverno. A tênue luz da manhã defasa o escuro da noite, mas não o extingue. Viro minha cabeça pra o lado e vejo meu marido com a mão em meu abdome. Estava tentado perceber se o bebê chutava e adormecera assim. Não quero levantar dessa cena digna dos mais belos quadros. Creio eu que estou feliz.

No entanto, preciso começar o dia. Ele vai trabalhar e eu fico em casa, no quarto do bebê. Toco as roupas e arrumo o impecável, tudo para aquele que virá. Já até consigo sentir seu cheiro. É coisa de mãe.

No dia imediato, vamos ao hospital. Pais de primeira viagem não se contentam com pouco. No caminho, observo os galhos secos das árvores, a fraca luz diminuindo. Uma rajada de vento frio toca meu peito. Não me sinto bem. Algo me perturba, sinto um vazio imenso. Tento esquecer e culpo os hormônios.

Todo o branco do hospital me desanima ainda mais. O cheiro de morte que emana desse lugar acaba de me arrasar. Preciso sair o mais rápido possível. Apresso-me para a sala de exames, querendo ouvir algo bom. Um boa noite que seja, para repelir a imagem desse lugar lúgubre.

Os exames começam. Tiram meu sangue, pressão e temperatura. Anseio pelo ultra-som, quero vê-lo de novo. As expectativas crescem em meu peito e seguro forte na mão do meu marido. Agora não há mais escapatória. Sou mãe mesmo.

O gel frio não me incomoda. Não consigo ouvir mais nada a não ser o som do coração do meu filho. Estou extasiada. Ao contrário do médico que forma uma feição estranha. Ele chama o meu marido para conversar enquanto a enfermeira me ajuda.

Eles voltam e dizem que têm más notícias. Penso eu que é algo trivial, como anemia ou algo assim. Mas não era, disseram que meu filho estava morto. Como? Ouvi seu coração bater há pouco, consigo sentir seu cheiro. O médico me disse que era acefalia, algo como estar vivo, mas morto ao mesmo tempo.

Ao voltar para casa, aos prantos, sinto uma raiva crescendo em mim. Destruo o quarto impecável e jogo fora as roupas. E paro. Olho para o finado crescendo em mim e me culpo. O que eu fiz? Como ele morre assim, do nada?

Tranco-me no quarto e fico pedindo por uma troca. Não quero enfrentar o real, quero imaginar que tudo vai ficar bem, que vou senti-lo chutar e que teremos outros dignos quadros, como já tivemos antes. Por um segundo acredito nisso, pelo resto do dia choro.

Depois de alguns dias, entro novamente no quarto e vejo o futuro vazio. Tão inocente, não merece isso, nem eu. Não mereço ver todos os dias o que me destrói. Eu e meu marido procuramos alguma maneira de acabar com nossa dor. Mas não podemos fazer nada.

Há leis que protegem a vida intra-uterina, não está em meu poder terminá-la. Mas, e a minha?

Levo o resto da gravidez como se estivesse despojada de tudo. Sentimentos, olhares... Agora não sinto mais cheiro nenhum. E choro, muito. Esperando que as lágrimas o tragam de volta para a vida. Choro tentando formar um portão de Osíris.

Certo dia, passo mal. Percebo que é o dia do funeral. Vou deprimida para o hospital. As dores do parto vêm como lanças. Não pela dor, mas pela falta de amor.

Ele nasce. Não quero vê-lo. Olho para o teto e imagino um novo anjo nascendo. Isso não me alegra, ele deveria ser meu anjo, meu tudo.

Ouço o médico declarar óbito.

Nasce. Morre. Morro.